A opção deste retalho recai sobre a Ermida de São João Baptista, porque se trata de um monumento de 400 anos, com referência aproximada ao ano de 1618, cuja data de construção é significativamente anterior à data de reconstrução que se seguiu ao “Mandado de Deus” de 1757, que consta da verga da porta principal gerando, desta forma, confusão geral. Temos, assim, o duplo propósito de assinalar a sua idade com referência à data da sua construção e contribuir para o conhecimento generalizado da mesma.
A Fajã de São João Baptista, tal como Santo Antão, foi um Curato de Vila Nova do Topo e chegou a ser proposto, por altura da discussão em torno das extremas para criação da nova freguesia, que aqui fosse a sede da nova Paróquia em que a divisória seria pela ribeira do Lexias[i], chegando mesmo a deliberar-se a construção de um cemitério por proposta da Junta de Paróquia (hoje freguesia) do Topo à Câmara Municipal da Calheta. Não se construiu o cemitério, contudo chegou a fazer-se funerais na Ermida de São João Baptista conforme se pode atestar pelos assentos dos óbitos de António Manuel em 1683 e Paulo Afonso em 1684.
Significa que a fajã de S. João Batista seria uma localidade de certa importância, considerando a fixação de um padre, Cura, então alojado no Calhau Miúdo, em casa da Junta de Paróquia, que em 1891 solicita autorização à Câmara da Calheta para a vender.
É natural que o povoamento da fajã de São João Baptista se desse nos primeiros anos do povoamento do Topo, antes mesmo de Santo Antão, pois este dava-se ao longo da costa e sobretudo a partir dos pontos de água e o Dr. Gaspar Frutuoso classifica a ribeira de São João como a mais forte de toda a ilha. Já em 1568 era habitada em permanência, conforme nos refere o Professor Santos Pereira, a respeito de Pero Quadrado, em “Os Grandes de Portugal e a Ilha de São Jorge”.
Na foz da ribeira de São João, é mesmo sustentado que possa ter existido uma Ermida. Consta que um fulano do Pico teria, aí, ido buscar uma pedra[ii], supostamente da dita Ermida, a pedido de umas tias do Senhor Artur Areias, já falecido e com interessante idade. Teria sido essa a Ermida de Nossa Senhora da Guia[iii]?
A imagem de Nossa Senhora da Guia encontra-se na Ermida de São João Baptista, pelo menos desde 1760, data do testamento do Padre Joaquim de Sousa Machado e de sua irmã, que “deixa 32.000 reis à confraria de Nossa Senhora da Guia da Ermida de S. João para fazer a festa”.
Ainda hoje se celebra a festa de nossa Senhora da Guia da Ermida de São João Baptista. A possibilidade desta Ermida ter existido na Granja e ter ficado destruída pelo “Mandado de Deus” é inverosímil, porque não existe qualquer registo a seu respeito, como acontece em relação a todas as outras por essa época, como é o caso da Ermida de Santa Rosa de Viterbo.
Contudo, não se descarta a hipótese de no inicio do povoamento da fajã de São João ter existido alguma estrutura tosca em louvor da Senhora da Guia[iv], na zona da foz da Ribeira de São João, construída pelos primeiros povoadores da localidade que, naturalmente, se teriam fixado na zona da Granja, porque garantia o abastecimento de água e posição de defesa a contar com alguma surpresa invasora.
Em relação à Ermida de São João Baptista, Cândido Avelar escreve que esta teria sido construída em 1550 por Baltasar da Cunha, o que não se afigura correto, considerando que o Padre Diogo Matos da Silveira refere, especificamente no seu testamento, que foram seus pais, genro e filha daquele Baltasar, que ali deixaram se edificasse a mesma.
Padre Diogo faleceu em 1667 com 87 anos, pelo que se pode estimar que os pais tenham nascido por volta de 1550. Aceita-se que cumprissem o testamento de Baltasar da Cunha (faleceu cerca de 1586) mas este certamente não seria de 1550, considerando que este compra quase toda a fajã de São João e o ilhéu do Topo somente em 1568.
Em Notas Históricas, Padre Manuel Azevedo da Cunha duvida da data e da autoria da construção, referindo que em 1623 a Ermida já está construída, estimando tenha sido construída ligeiramente antes de 1618. Confrontado com a informação de Avelar e testamento do Padre Diogo, questiona mesmo se seria neto e não filho de Baltasar, confessando possuir escassos dados para assumir uma posição concreta.
Em 1545 a filha de Guilherme (da Silveira) Casmaca, viúva do Escudeiro João Pires de Matos deixa em testamento um legado para construção da Ermida de São Pedro, no local onde o marido tinha mandado começar a Ermida em honra de São Lázaro, depois transferida para as suas terras (abril de 1518) no Caminho do Porto e hoje Ermida da Senhora d’Ajuda.
Presentes estes dados, somos de entendimento que as Ermidas de São Pedro e de São João são obras do mesmo período, provavelmente executadas pelos mesmos pedreiros. Retire-se a sineira de São João e temos alçados muito semelhantes.
Também ficamos a saber, pelo livro da arca nº. 4, que depois de 1641 e antes de 1757 foram feitas obras no valor de 58.920 reis para ampliação da capela e construção da sacristia; que antes de 1763 foram gastos 4.800 reis na reforma da imagem de São João Batista, danificada pelo “Mandado de Deus” e que a reconstrução da Ermida, concluída em 1767(data gravada na verga da porta principal), custou 150.600 reis
Francisco Ernesto de Oliveira Martins contou a Francisco Fernando de Borba que um dia lhe apareceu em casa um homem do Topo, que lhe propôs a transação de quatro imagens que teriam pertencido à Ermida de São João Batista e que, desalojados por “Santos Novos”, teriam sido levadas para uma Ermida no Ilhéu do Topo, construída propositadamente para os albergar. As imagens de Francisco Ernesto de Oliveira Martins seriam:
– São João Baptista, século XVI, altura 75 cm, referência na página 135 de “A Escultura nos Açores”, Região Autónoma dos Açores, 1983.
– São Pedro (flamengo), século XVI, altura 80 cm, referenciado na página 151 da mesma obra.
– Santo António, século XVI, altura 33 cm, referenciado na página 152 da mesma obra.
– Virgem (flamenga), século XVI, altura 70 cm, referenciada na página 160 da mesma obra.
No fim do seculo XIX é construída a torre sineira, por oferta da família do Bispo Enes, natural do Topo e feitos alguns melhoramentos com o dinheiro de uma subscrição. Outro bispo ligado à fajã de São João é D. José Pedro da Silva (3º bispo jorgense), natural de Santo Antão e que passava as suas férias na fajã, vindo diretamente da ilha Terceira e desembarcando na própria fajã, por cortesia do mestre do barco.
As obras podem ter assumido algum teor politico, numa ótica independentista, que uns pretendiam consolidar e outros dificultar, contexto em que se fala na “Ermida de Nossa Senhora da Guia”, na Fajã de São João Baptista com uma subscrição pública para a aquisição de um sino para a Ermida, que foi fundido por José de Oliveira, Lisboa, em 1894.
Manuel Azevedo Enes, advogado no continente, sobrinho do Bispo Enes e adepto incondicional da indivisibilidade territorial, ofereceu um sino maior, onde se lê: “Oferecido à Ermida de N. S. da Guia pelos sobrinhos do Bispo de Portalegre – Dom Manuel Ennes – 1895”.
A “Ermida de Nossa Senhora da Guia” parece assim ter sino antes mesmo de ser construída. João Silveira Leonardo, herói da Independência de Santo Antão, Presidente da Confraria de São João, conclui que a imagem de Nossa Senhora da Guia se venera na sede da confraria que ele preside, de forma que agradece a oferta, toma conta dos sinos e encarrega José dos Reis, que morreu em 1958 com 83 anos, de construir aquela que é a atual sineira da Ermida de São João Baptista, para os instalar e que hoje estão eletrificados para compassadamente marcar o pachorrento tempo da fajã.
Assinale-se ainda a recuperação que se seguiu ao sismo de 1980 que tanto afetou a zona do Topo, a ilha da Graciosa e Angra do Heroísmo.
No ano findo de 2018 realizou-se, na Casa do Espirito Santo de Santo Antão, um jantar para angariação de fundos com vista a realização de obras de reparação e conservação essencialmente da cobertura da Ermida de São João Baptista e que contou com muita ajuda da população, conforme deu conta o Pároco Dinis Silveira, realçando o sucesso da iniciativa.
Sem uma data certa, mas com as referências escritas conhecidas, concordamos com a ideia defendida pelo Padre Manel Azevedo da Cunha quando situa a construção da Ermida antes de 1618, confirmando-se que Padre Diogo Matos da Silveira seria neto, por ser filho de João Matos da Silveira e de Luzia Dias, filha do dito Baltasar da Cunha, casado com Adriana Teixeira de Soutomaior, filha do cavaleiro da ordem de Jesus Cristo, Jerónimo Gonçalves Teixeira de Soutomaior, que teve terras de dadas no Monte Formoso.
O balizamento da data de construção da Ermida é em nosso entender de estabelecer entre 1586 e 1618, com uma ressalva que nos leva estreitar esta janela para cerca de 1600, atento o facto dos primeiros Santos daquela Ermida serem do século XVI e que, naturalmente, seriam adquiridos no fim da obra ou com a sua conclusão.
Concluímos, deixando um apelo ao Exmo. Sr. Padre Dinis Silveira, para que seja colocada uma placa informativa no adro com a data e autoria da obra da Ermida de São João, incluindo a construção da torre sineira.
Agradecendo ao jornalista Armando Mendes a honra de estes textos saírem nas páginas do prestigiado Diário Insular e ao Info-fajãs de Mark Marques, faço votos de que 2019 seja um ano de excelência para estes e para todos os seus dirigentes, colaboradores e leitores.
São João, janeiro de 2019
Paulo Teixeira
Foto – Fotoceanus
[i] Hoje conhecida por Ribeira Lixivias. Notamos esta transição na segunda metade do século XIX nos assentos da igreja em que tanto se assinala Ribeira do Lixivias ou do Lexias.
[ii] Esta pedra ainda hoje existe guardada na Ermida de São João, mas não é conclusiva.
[iii] Senhora da Guia tem um significado de condução; de orientação. Ora num contexto de navegação e descobrimento/ exploração parece-nos que poderia ser uma forma de agradecer por terem “sido conduzidos” a uma localidade próspera e vantajosa para fixação da população.
[iv] O Henrique Carvalho fez-me referência a uma pedra que observou ocasionalmente, submersa, na zona da foz da ribeira de São João, em condições extraordinárias do mar, que parecia ser de uma soleira. Como se sabe a encosta da ilha sofreu mutações constantes ao longo dos tempos, sobretudo nas datas de fortes manifestações da natureza de que se destaca o “Mandado de Deus” de 1757 que, de forma geral, soterrou as Fajãs.
