Espero que as palavras que se moldam como barro, sejam brisa suave ou gota de água límpida correndo livre e veloz pelas escarpas íngremes e imponentes da ilha.
Serão palavras simples, mas sentidas e tão leves como o voo dos pássaros cruzando e unindo oceanos, onde a saudade será sempre nostalgia, tristeza, alegria, solidão mas sempre e sempre vontade de partir querendo ficar, porque um Açoriano quando parte leva sempre a ilha amarrada ao coração com cordas de saudade e um forte nó de ternura.
Cais de Palravas porque ainda hoje pese a «força do avião» o cais foi (e é) lugar de afetos, de partida e de chegada, de sonhos e de anseios, alegria dos regressos , tristeza das partidas, mas um lugar com alma e sentido da vida. Beijado pela imensidão do oceano, onde os olhares se cruzam e demoram no grande mistério da existência humana. Espero pois que as minhas palavras, sejam sempre e só partida com vontade de chegar ao coração daqueles que que acreditam que é preciso e sempre começar, recomeçar, mas andar, trazendo a alegria de viver e partilhar com os outros os sentimentos da solidariedade, da fraternidade e da esperança e no apostar sempre na afirmação e no progresso verdadeiro da terra que nos serviu de berço. Por isso escrevo algumas vezes.
O «Comandante Jorge Artur»
Jorge Artur o «Comandante» era figura marcante e típica da Fajã das Almas com os seus dizeres, a sua simpatia e a maneira peculiar de contatar com os demais, fossem visitantes ou locais. Passei juntamente com alguns amigos: Engº Brasil, João Aires, Vasco Matos e o senhor Valdemiro entre outros, tardes de amena cavaqueira onde o sentido de humor fino do Jorge Artur (entre umas cervejas ou uns copos de vinho), enquanto se esperava pelas sopas de peixe do senhor Valdemiro e esposa, tornava esse espaço de tempo único, porque se variam das nossas mentes problemas, «stress», preocupações para dar lugar a um momento temporal sublime onde o espírito voava livre e leve através das imagens divertidas a que as «estórias» do Comandante nos conduziam.
Foram tantas e multifacetadas histórias que a sua partida derradeira, abriu um vazio profundo nas vivências únicas e singulares da Fajã das Almas, quer fosse nas tardes amenas de verão, ou nas noites frias de inverno quando o mar galgava as rochas e beijava atrevidamente e com fúria os «passeios» da beira mar da fajã. Recordo assim algumas passagens que revelam a inteligência, direi a «destreza» inata de Jorge Artur, para a construção da sua personagem única, aliás bem definida pelo Eng. Manuel Brasil no seu livro «Da Fajã das Almas» (edição do Município de Velas 1999).
Convivi e partilhei com o Comandante muitos e bons momentos, mas recordo particularmente aquele dia de verão, em que me convidou para ir pescar com ele no seu velho batel «O Terreirense».
Lá fomos manhã cedo mar fora para a «marca», lugar só conhecido pelo Jorge onde haveria (ás vezes) garantia de boa pescaria.
Foi passando a manhã e o peixe tardava em aparecer, o Comandante lançava «fio» velho e ferrugento com os anzóis bem alinhados e seguido de engodo a Jorge Artur mas peixe zero.
Sabes dizia-me ele- estás a ver esta pomba que anda aqui à bocado à nossa volta? Pois é, conheço-a desde o tempo da segunda guerra, vem sempre visitar-me quando venho à «marca», mas como eu está a ficar velha e desdentada, qualquer dia deixa de aparecer e eu igualmente.
Entretanto mais uma vez Jorge lança o «fio» desce e sobe vai e vem e parte-se -Porra-diz mestre Jorge, agora estamos fritos.
Neste espaço de tempo passa o Cruzeiro do Canal para a Terceira entre nos e a ilha comemos alguma coisa daquilo que tinha mos levado, e Jorge Artur «agarra» a cana e um anzol e tenta apanhar algum peixe, estava entusiasmado nessa tarefa, quando vemos avançar na nossa direção um barco (semi-rígido) trazendo a bordo Eng.Brasil e os meus filhos Pedro e Tercio que nos vinham trazer (por sua iniciativa) mais comida e umas cervejas frescas. Como vai a pesca-perguntou o Eng Brasil. Bem, muito bem, temos já ai um bocado grande de peixe mas vamos ficar até mais tarde, porque eu tenho ai por perto um peixe que me anda a envergonhar faz muito tempo e tem de ir hoje comigo para terra. Lá partiram os nossos visitantes, confiantes nas nossas(dele) capacidades piscatórias. Jorge Artur aproveitou os momentos seguintes para me ensinar confidencialmente as coordenadas da «marca», deixamo-nos ficar naquele mar dolente mais umas horas sem que qualquer peixe( nem um) quisesse boleia para a Fajã. Ao entardecer diz-me o Comandante -vamos para terra o Eng Brasil deve estar a dormir «o sono da merenda» ,não nos vê chegar. Chegados ao pequeno cais da Fajã arrumamos o barco e tiramos a agua que já era muita no seu interior, o Jorge pegou no balde (sem peixe) meteu-lhe em cima uma saca molhada e foi logo para casa ,dizendo-me o Engenheiro ou o Valdemiro se perguntarem pela pescaria, diz-lhe que se não pescamos mais foi porque se acabou o engodo mas que levei para casa dois baldes grandes cheios de peixe que dá para dois meses para mim e pro´ Pantufa .Assim fiz como combinado, tendo mestre Valdemiro (depois de oportunas perguntas) dito: O Jorge podia ter deixado aqui dois peixes que a gente agora fazia um caldo (á maneira) que até a lua chorava para se juntar a nós. Quanto ao Eng. Brasil á noite quando apareceu no Restaurante só perguntou se o Jorge tinha apanhado o tal celebre peixe .Hoje passados alguns anos ainda sei e guardo «confidencialmente» as coordenadas da »marca», mas não volto lá. Jorge Artur não morreu (as pessoas humildes, autenticas e amantes da vida não morrem-partem)partiu para a sua última e longa viagem(a pomba companheira de muitas pescarias provavelmente também),foi-se o Comandante acabaram-se as histórias do Bocage, e outras de autoria do próprio. Jorge defendia a sua Fajã com muita garra e entusiasmo junto das autoridades locais e regionais(foi meu convidado para um jantar do Governo Regional de Carlos Cesar na Fajã onde com fino sentido de humor foi dizendo os problemas da ilha)e quando das obras de asfaltagem e arranjo do largo da Fajã das Almas, obra que sempre sonhou, deu-me um grande abraço e comovido agradeceu, quando não se devem agradecer obras ao poder público. Para si nunca pediu nada. A sua partida como escreveu alguém (apagou-se a luzinha da Fajã) logo a Fajã e a ilha de S, Jorge ficaram mais pobres ,e eu com menos um amigo daqueles que nada pedia ,senão partilhar ideias, sonhos, tristezas e alegrias, ou melhor conviver na construção de palavras que matassem a solidão(Jorge vivia só com o seu gato Pantufa) e torna-se a vida mais alegre e divertida. Sei Jorge ,que estás em paz, alegro-me com isso ,e enquanto a memória não me trair, recordar-te-ei sempre com muita estima e consideração, a mesma quando juntos olhava-mos o mar do canal, com o Pico em frente como muralha de amizade, e as tuas conversas sérias buscavam sempre, dar à vida um sentido positivo, onde marcavam presença significativa os teus filhos.
E Comandante fostes um vencedor porque citando Nelson Mandela« Um vencedor é um sonhador que nunca desiste», e tu nunca desististe de sonhar e e de te afirmares como um ser humano admirado e respeitado por todos que contigo conviveram de perto.
17.12.2021
