Vir de S. Jorge estudar para a Terceira ou, simplesmente, fazer o exame de admissão ao liceu, nos anos sessenta, passava por se fazer uma viagem de muitas horas, saindo dos portos das Velas, da Urzelina, da Calheta ou do Topo, rumo a Angra. Da Urzelina ao Porto de Pipas distavam seis horas de navegação. A viagem demorava mais. O tempo gasto em cada porto.
Malas feitas, a da roupa que era pequena, porque não havia muito para a encher, um saco de batatas para dar às primas que nos iam acolher em casa por alguns dias, cebolas, alhos, uma galinha ou duas e lá se seguia na carroça do Baganha, para o cais da Urzelina, esperar o barco. Alguns já se esqueceram, mas nem iam na carroça do Baganha, iam mesmo a pé, de mala às costas. Anos mais tarde já se ia de “carro de praça”.
Nos bolsos trazia-se pouco dinheiro. (Quando vim fazer exame do 2º ano, trazia comigo 500 escudos, o equivalente a dois euros e meio hoje, e isso era uma pequena fortuna. Mesmo assim, consumi boa parte dessa guita no carrocel que estava montado no Relvão e numa barraca de tiros onde uma menina loira de fazer perder o juízo, de arma de pressão de ar na mão, fez com que eu e muitos mais apurássemos a pontaria e gastássemos o que não podíamos. Com isso, ganhei, como prémio de acertar no alvo, um galo de Barcelos em loiça, exótico, de cores garridas e de crista grande, que encantou minha tia quando regressei, e serviu para adiar uma boa briga que pairava no ar e que eu ganhara bem).
Vindo do Cais do Pico, avistávamos o barco, o Terra Alta, um ponto branco, a meio canal e regulávamos, assim, a nossa marcha e pontualidade.
O Terra Alta era um barco bonito, branco, de boa marcha e melhor navegação. Possuía dois motores. Tinha dois mastros. O da proa onde preparado para vela e o de ré que era também guindaste. Foi construído em Santo Amaro do Pico em 1947. Transportava carga e passageiros entre as ilhas “Ilhas do Triângulo” e a Terceira, indo raramente à Graciosa. Entre mastros, tinha o casario onde viajavam os passageiros. À proa sei que tinha uma pequena cozinha onde se podia beneficiar duma boa petiscada a bordo e saborear um bom vinho do Pico. Porão entre a cozinha e o casario. Neste, bancos com assentos de madeira e camarotes com cortinas de chita para os passageiros, nas laterais, junto ao costado. À ré, ficava um espaço coberto de lona branca, um deck, com bancos de madeira, em ripas, junto e fixo nas amuradas, onde se sentavam os passageiros que queriam viajar à fresca. Entre este espaço, à ré, e o casario, que tinha outro deck, ficava outro porão e um espaço livre para mais carga. Era um barco de boas linhas e estudado para enfrentar o nosso mar. Navegava bem com qualquer mar. Tinha dois motores o que lhe permitia atingir, de início, as 12 milhas por hora. De vez em quando, se o vento era favorável, içava uma vela amarelecida no mastro de proa.
No porto, cheio de gente e malas, sacos, caixotes, cestos e animais, (com roupa, batatas, cebolas, galinhas e fruta), destinados à Terceira, estava o guarda Viegas robusto e pacato, na sua farda de cotim cinzenta, o símbolo da autoridade ali. O barco só partia sob o seu assentimento e assinatura prévia. Era um homem bom. Conversava comigo muito tempo, noutras e muitas viagens que fiz, embarcando naquele porto. Inteirava-se dos meus estudos e dizia-me: – Estuda, rapaz! Aproveita esta oportunidade. E ficava-se ali no cais, ao Sol, com os olhos perdidos no mar, tirava o boné e coçava a cabeça, nunca entendi porquê. Talvez o guarda Viegas tivesse tido na vida oportunidade de estudar e não a aproveitou. Talvez… Guarda Viegas sabia aconselhar. Era bonacheirão e bom.
Após troca de prosa entre guarda Viegas e o mestre do barco, todos os passageiros e malas a bordo, soltas as amarras, lá partia o barco, num tac-tac, tac-tac, tac-tac, ruidoso, provindo dos seus dois motores, depois de buzinar também três vezes, galgando as ondas e deixando atrás de si um esteiro de espuma branca.
E lá seguíamos costa abaixo, Sul de Jorge, até à Calheta onde tudo se repetia, e em seguida em direcção ao Topo, numa viagem de algumas horas, percorrendo a costa. A maioria dos passageiros a bombordo, deslumbrados com a beleza das paisagens da ilha, matizada de múltiplas tonalidades de verde, aqui e ali retocado do branco das cascatas das muitas ribeiras que abundam no sul da ilha.
Saindo do cais do Topo, já ao largo do ilhéu, Terceira à vista, lá se começava a última etapa da viagem que durava três longas horas. Em dias de mar chão os golfinhos acompanhavam-nos, de vez em quando. Com mar bravo pedia-se companhia a Deus. Alguém que se prevenira com um terço, rezava.
Muitos não resistiam ao enjoo. Passavam a vigem num tormento enorme, chegando à Terceira lívidos e quase mortos. Nem mar nem golfinhos viam. Só perguntavam aos marinheiros que, solícitos, os socorriam e apoiavam, quanto tempo faltava para chegar a terra.
A viragem do Monte Brasil, e a chegada ao Porto de Pipas eram o alívio para estes mártires do enjoo. Para os restantes, uma viagem para recordar. E, tal como eu, talvez recordar para sempre!
Hoje temos alguns barcos cómodos, modernos e rápidos. Com regularidade possível na época estival. Dá gosto viajar agora. Nem se sente a viagem.
No entanto, não os temos no Inverno. Apenas, e quase só, navegam nas Ilhas do Triangulo. E isso faz-nos falta. O povo não hiberna no Inverno. Há, sim, menos turistas, mas se houvesse barco lá se ia às “ilhas de baixo” de vez em quando. Não há hoje batatas, galinhas e fruta para transportar.
Mas julgo que se tivéssemos um barco com as linhas e a resistência ao mar como o Terra Alta tinha, teríamos mais ligações no Inverno. O Terra Alta arrostava e vencia o mar. Temos boas recordações deste navio. Podíamos, talvez, ter outro agora, dotado do conforto e tecnologia dos nossos dias, moderno e apto para o mar dos nossos canais, assim pequeno e esguio, talhado por mestres do Pico e construído nos estaleiros de Santo Amaro. Barco que soubesse fintar o nosso mar e operasse nos pequenos portos, se necessário. Talvez ganhássemos todos.
Falta-nos hoje também um Terra Alta que nos resolva melhor a vida!
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