A ilha de São Jorge, também conhecida como a ilha do dragão, fica situada no Grupo Central no Arquipélago dos Açores, sendo a ilha mais central do arquipélago. A sua grande singularidade são as fajãs, sendo a mais conhecida a Fajã da Caldeira de Santo Cristo.
Todas as ilhas possuem as suas particularidades, que as tornam únicas e peculiares. O que tem São Jorge de tão especial? Como filha da terra que sou, esta ilha é especial, pois viu-me nascer e crescer, foi ela que me incutiu todos os valores que hoje me tornaram a cidadã que sou.
Para obter o conhecimento profissional, tive que sair por alguns anos, contudo ao concluir a licenciatura em enfermagem regressei por forma a tentar contribuir para o desenvolvimento desta, onde ingressei num centro de saúde com internamento, o Centro de Saúde de Velas (CSV).
O centro de saúde é uma unidade prestadora de cuidados de saúde primários ou essenciais, tendo por objetivo a promoção e vigilância da saúde, a prevenção, o diagnóstico e o tratamento da doença e a reabilitação, dirigindo a sua atividade ao indivíduo, à família e à comunidade e privilegiando a personalização da ligação entre os profissionais de saúde e os utentes. (Capítulo I Artigo 1.º do Decreto Regulamentar Regional 3/86/A).
O que se faz num centro de saúde de uma ilha dita pequena?
A prevenção está na linha da frente dos cuidados, e somos nós enquanto enfermeiros dos cuidados de saúde primários que educamos para a prevenção de doenças, que promovemos estilos de vida saudáveis e que ajudamos a lidar com a doença crónica.
Cuidamos com o simples objetivo de proteger ao máximo a saúde do nosso utente.
A nossa área de atuação como enfermeiros deveria ser de cuidados de saúde primários, pois a principal função dos centros de saúde é promovê-la, contudo nesta e noutras ilhas “ditas pequenas”, a nossa atuação vai além disso, pois prestamos também cuidados diferenciados.
Temos que criar mecanismos/formas de contornar o nosso isolamento geográfico e deste modo os utentes terem o mesmo direito e as mesmas oportunidades.
Para tal há que estabilizar os doentes e encaminhá-los, quer por via aérea, quer por via marítima para as unidades de referência.
Citando Pedro Soares, Presidente do CDR da Ordem dos Enfermeiros dos Açores,” … não podemos ter um hospital em cada ilha, mas por outro lado, temos de criar todas as condições de acesso ao SRS dos Açores, independentemente da ilha, um Açoriano é um Açoriano”.
Trabalhar numa ilha pequena é ainda dar mais significado à citação de Wanda Horta “somos gente que cuida de gente”.
A unidade básica de urgência funciona também como sala de tratamento, onde os utentes se deslocam para fazer penso e injetáveis. Esta dinâmica de trabalho faz confusão e é desconcertante para alguns dos colegas que começam a trabalhar no CSV, pois não conseguem assimilar que, enquanto se faz um penso e se der entrada a um utente urgente/emergente temos que socorrer este utente, passando aquele para segundo plano, uma vez que somos o único enfermeiro ao serviço. Ou seja, temos que estar preparados para tudo, pois nunca sabemos o que nos “entra pela porta dentro”.
Contudo, é isso que nos torna enfermeiros tão peculiares, não nos permitindo ser especialistas numa determinada área, pois como se diz na gíria temos que ser “pau para toda a obra”, somos polivalentes, temos que ser enfermeiros de urgência quando estamos de SAP (Serviço de Atendimento Permanente), enquanto no dia anterior fomos enfermeiros em Saúde Infantil, isto quer dizer temos que fazer um “reset” do serviço que tivemos no dia anterior e um “upload” para o serviço em que estamos hoje.
Simplificando, se der entrada um utente com uma fratura, temos que ser enfermeiros de ortopedia e pensar como tal; um edema agudo do pulmão ou suspeita de enfarte agudo do miocárdio vestimos a pele de um enfermeiro de cardiologia; uma crise asmática e logo somos enfermeiros de pneumologia; uma hemorragia digestiva alta e adivinhem o que somos? Enfermeiros de gastro.
Sendo assim, nestas ilhas proferidas de “pequenas”o mesmo enfermeiro percorre todas as etapas do ciclo da vida, porque tanto assiste um utente com 6 dias de vida como a um utente centenário.
Posso afirmar de viva voz que sou apenas uma simples enfermeira, mas quando é necessário, sou essas vertentes todas que mencionei.
Nós somos grandes embora pequenos, fazemos tanto com tão pouco e muitas vezes mal compreendidos pelos colegas que não sabem o que é ser enfermeiro de “todas as especialidades” numa ilha sem hospital.
Fazemos pequenos milagres, mas para quem não conhece a realidade da ilha são uma insignificância e eu compreendo muito bem o porquê.
Porque dentro dum serviço somos bons naquele serviço, mas fora dele às vezes somos como “peixe fora de água”. Nós, enfermeiros desta ilha no meio do arquipélago, fazemos tantas vezes o impossível para que tudo corra pelo melhor, para o bem dos nossos utentes.
Temos a plena noção que quando nos deparamos com um utente em estado grave, temos que prestar todo o socorro necessário, juntamente com médicos e auxiliares, como se de um hospital se tratasse, por forma a providenciar a sua recuperação ou estabilizar o mais possível até à chegada da ajuda diferenciada, que por vezes é tardia, tendo em conta a dispersão geográfica, condições climatéricas e disponibilidade dessas equipas.
Durante essa espera sentimo-nos muitas vezes impotentes sem poder fazer mais, tendo em conta a nossa pequenez de recursos e de meios, deixando-nos angustiados e psicologicamente afetados, algo que infelizmente não é contabilizado.
Perante situações como as descritas anteriormente e caso apareça no SAP uma situação aguda ou um utente no internamento tenha uma involução do seu estado, temos que socorrer esse utente e “abandonar” a essência do cuidar e desamparar temporariamente os outros utentes.
Ao longo destes 18 anos de serviço no CSV tenho assistido a um triste e contínuo empobrecimento das instalações/condições de trabalho, quando comparado com o início de carreira, numa espiral agoniante de insegurança sobre o futuro, especialmente neste último ano.
Atualmente no serviço de internamento temos 8 camas, sendo 4 de internamento e 2 de observação. No serviço de SAP temos 2 camas de observação. Esta redução deve-se às obras de melhoramento do centro de saúde, mas que infelizmente se encontram paradas.
Com a chegada da Covid-19 verificou-se um aumento das nossas tarefas, nomeadamente as colheitas. Veio ainda reforçar/demonstrar o quanto somos insulares, pois ao vermos a realidade continental leva-nos a pensar “e se fosse cá?”, ou seja, se o surto que assola o território de Portugal continental fosse em S. Jorge, ou em qualquer outra ilha de “pequena dimensão”, como seria o seu combate.
Aí sim, seremos todos poucos para a quantidade de cuidados necessários a providenciar à população infetada. A todos os enfermeiros que trabalham na USISJ (Unidade de Saúde da Ilha de São Jorge) e os que já trabalharam, um bem-haja.
Que o ano que começa nos traga uma nova esperança na enfermagem.
